O destino de Sebastien-Nicolas Gachet
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Henrique Bon
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O suiço de Gruyères Sebastien-Nicolas Gachet, embora
quase desconhecido pela historiografia brasileira, destaca-se por haver
sido um dos principais responsáveis pelo primeiro movimento migratório
em carater organizado, de europeus não-portugueses para o Brasil.
Tal episódio, ocorrido em 1819, iria inaugurar uma tendencia que
se firmaria nos anos subsequentes com a vinda de alemães, espanhóis
e italianos, cujo maior fluxo se daria já na segunda metade do século
XIX. Misto de diplomata e representante de uma sociedade capitalista, que
esperava auferir significativo lucro aproveitando-se das circunstancias
sociais, economicas e políticas favoráveis a migração
nos dois lados do Atlântico, sua tortuosa tragetória o levaria
a gozar de um breve, mas expressivo prestigio em seu Cantão e junto
a côrte portuguêsa estabelecida no Brasil, para em seguida,
fracassado o movimento, experimentar a degradação , o ostracismo
e o anonimato em meio a região sul-fluminense, distante do
Eldorado que sonhara nas montanhas centrais da provincia.
Antes mesmo de sua incursão ao
Novo Mundo, contudo, o nome de Gachet representaria no
imaginário de alguns, a própria personificação
da aventura, tendo pelo menos dois de seus biografos lhe atribuido estranhas
peripécias , entre as quais uma obscura passagem pela Argélia
como escravo, capturado que fora de um navio cristão ao fugir
de Nápoles, em cujo reino teria sido secretário particular
do soberano. O historiador Martin Nicoulin, porém, encarrega-se
de retirar deste personagem o seu véu romantico, emprestando-lhe
uma dimensão mais exata, dela não escapando o voraz
comerciante sob a capa do diplomata.
Nascido em Paris aos 27 de outubro
de 1770, filho de Joseph-Emmanuel-Eloy Gachet, de Gruyères e de
Marguerite-Marie Zürich , teria ele realmente alguma relação
com Murat , ocupando um cargo administrativo no Reino de Nápoles,
bem mais modesto no entanto , do que nos faria crer a sua primeira
biografia . Quanto ao suposto aprisionamento pelos mouros, demonstra
insofismavelmente Nicoulin ser o episódio mais
um fruto de fantasia , talvez mesmo deliberada , entre tantas das que povoaram
a sua desigual trajetória .
Dele se sabe porém, o suficiente
, destacando-se-lhe em todas as facetas examinadas, a extrema habilidade
de negociador, ou mesmo negociante, fosse a mercadoria madeira para
o Império francês, como no caso de 1803 ou colonos
para o Brasil em 1819.
Desnecessário aqui no entanto,
discorrer sobre seus objetivos iniciais na America Portuguesa, de como
teria ele adquirido credenciais diplomáticas em seu cantão
natal, ou se estas valeriam como tal, bem como sobre suas negociatas secretas
com Jerome Bremond, francês alçado à condição
de consul lusitano através de sua indicação,
ou ainda a responsabilidade direta ou indireta pela morte de mais de 500
concidadãos. Tais episódios, hoje por demais estudados,
não deixam dúvidas quanto ao caráter pouco escrupuloso
do indivíduo sobre o qual indagaria o lucernês Joseph Hecht:
"quem poderia suspeitar que no interior deste homem, que a natureza guarnecera
com uma grande corcunda, estivesse escondida tanta velhacaria ? "
Enfim, as negociações
de Gachet, a partir de sua primeira estada no Brasil
em 1817, as quais resultariam na fundação de Nova Friburgo,
não oferecem hoje qualquer segredo significativo. Sua vida,
de fato, se tornará obscura quando, aos 49 anos, desembarca o mesmo
do Camillus no Rio de Janeiro, em 8 de fevereiro de 1820, juntamente com
os últimos colonos . Avarias causadas por um encalhe ainda
na Mancha obrigara seu navio a uma permanencia forçada na
Inglaterra, inoportuno acaso para o principal organizador do movimento
migratório, uma vez que as más notícias o precederiam
e com elas a reação negativa das autoridades lusitanas a
sua pessoa. Dele se questionaria a partir de então as cobranças
indevidas efetuadas contra os colonos, a arrastada permanencia na
Holanda, a superlotação nos barcos, o desmedido
número de mortos , a quantidade dos inscritos
.
Os depoimentos incriminadores de Porcelet
, recebido pelo rei D. João VI logo após a chegada do Daphne
em 4 de novembro de 1819, bem como o número de mortos no Urania,
sem dúvida o mais fatídico dos navios, provocam tal indignação
junto às autoridades brasileiras que Gachet, chegando ao Brasil
três meses após, encontra um ambiente extremamente desfavorável
a sua pessoa e seus intentos. Tentando ser recebido seguidamente por Miranda,
Inspetor da Colonização Estrangeira e pelo monarca, deles
não obtém mais que uma peremptória recusa.
Decididamente nada saíra como o ambicioso diplomata planejara e
no lugar de honrarias e riquezas seria ele condenado ao ostracismo. Na
tentativa de defender-se, Gachet acusa seguidamente Bremond e Porcelet
, o primeiro , principal acionista da empresa que financiava Gachet, mantida
até há pouco em segredo e o segundo um doublé
de médico e agente policial também secretamente ligado a
Bremond. Sua condição, porém não se reverte.
Em desgraça no Brasil, tem ele as credenciais diplomáticas
cassadas pelo cantão de origem e o projeto de se estabelecer em
Nova Friburgo como um grande senhor desvanece-se completamente.
Gachet conserva ainda algumas terras nos limites
da colônia, sob a guarda de um empregado seu de nome Claude Clerc.
Este último seria exatamente aquele destinado a dar o golpe de graça
no inescrupuloso gruyeriano, solicitando em 27 de abril de 1820, no âmbito
jurídico, o embargo dos pertences do patrão , conforme abaixo:
Diz Claudio Sueller [sic], suiço, e um dos primeiros colonos
que veio na companhia de Mr. Gachet que ele , suplicante, fez ver ao Exmo.
Snr. Inspetor desta Colônia, por um requerimento e documento a ele
junto, que o dito Gachet lhe é devedor da quantia de 100$000 rs
de empréstimo e , além disso, lhe deve ordenados de dois
anos e meio que esteve servindo na sua Fazenda dos Inhamesl, cujo requerimento
foi remetido com as reclamações dos mais colonos para o Rio
de Janeiro; e como o dito Gachet está em circunstâncias talvez
de fuga, em razão das más contas que tem dado de sua Comissão,
e como ele deva a outras pessoas, teme o suplicante que antes de haver
decisão do seu requerimento, estas requeiram a V. M.ce embargo da
dita Fazenda e criação que nela se acha e como o suplicante
deva { ..ilegível..] pretende por isso ..[ ilegível..] a
dita dívida e que V. M.ce lhe mande fazer Embargo na Fazenda dita
para pagamento quando houver decisão do requerimento referido, e
como para isto o dito fim depende de despacho//.
Em Nova Friburgo, contra ele pesavam
ainda outras acusações, entrando mesmo 34 imigrantes , em
inicio de 1820, com uma representação junto as autoridades
brasileiras, exigindo-lhe um total de 9.012,10 francos franceses, que lhes
houvera sido subtraídos de diversas formas, desde cobranças
indevidas referentes a despesas já previstas como da coroa, a empréstimos
e mesmo depósitos que alguns haviam feito, de suas economias, nas
mãos do organizador do movimento. O requerimento do embargo supracitado
permite-nos também observar que teria Claude Clerc chegado ao Brasil
em uma das viagens anteriores de Gachet, que habilmente, antes mesmo da
instalação da colônia, adquirira o dito sítio
dos Inhames. Quanto a esta afirmativa, não deixa dúvida o
depoimento do juiz almotacé Ignácio de Assis Saraiva e Fonseca,
que em 4 de maio de 1820, declara:
"… que tinha perfeito conhecimento do mesmo [Claude Clerc] e que sabia
pelo ver, que ele servia ao embargado Gachet há mais
de um ano e que sabia, por ser constante, que o dito Gachet não
estava muito bem visto pelas más contas que se dizia ter dado de
sua comissão."
O embargo atingia ainda a casa mantida por
Gachet na própria vila de Nova Friburgo onde em meio a móveis,
utensílios domésticos, inúmeros vestidos e roupas
sofisticadas, figuravam dez volumes da História Filosófica,
um volume dos Costumes Israelitas, Fragmentos escolhidos de Eloqüência,
um Dicionário dos Alimentos, Pensamentos sobre as Verdades da Religião
e o quinto tomo da História do Povo de Deus , entre outros
textos considerados de valor para um homem público de então
ou mesmo um viajante. Quanto aos pertences, a não ser a já
citada abundância de roupas, algumas inegavelmente finas, e móveis,
inimagináveis na maioria das residências dos colonos, poucos
objetos fariam supor a condição social de proprietário,
circunstância que se modificaria tivesse este provavelmente tempo
para se estabelecer com pretendera.
O destino imediato de Gachet parece,
como insinua o processo de embargo, desconhecido. Recolhido no primeiro
momento em uma estratégica saída de cena, logo após
vamos encontrar o "cidadão de Gruyères" ocupando algumas
terras no atual município de Valença, mais exatamente "uma
légoa de terras em quadra no sertão dos Indios da Freguesia
de Nossa Senhora da Glória de Valença, no Ribeirão
de São Fernando ", onde finalmente, em 1826, regulariza ele a situação
fundiária através de Carta de Sesmaria concedida pelo Imperador
Pedro I. Lá, seria ele vizinho de Siméon Steullet, suiço
do Jura e um dos remanescentes da migração de 1819.
Talvez a memória de seu cantão de origem não
se tenha aplacado quanto as peripécias mal explicadas deste
inusitado diplomata, de forma que não retorna o mesmo à Suíça,
permanecendo no Brasil até a morte. Gachet, nos vinte anos subseqüentes
vinculará mais e mais sua atividade agrícola à região
sul da província do Rio de Janeiro, adquirindo terras também
na Ilha Grande . De fato , entre 1833 e 1836 pelo menos cinco vezes terá
ele se deslocado da Ilha Grande ou de Angra dos Reis para o Rio de
Janeiro, atribuindo a sí no Registro de Entrada de Estrangeiros,
a nacionalidade francesa, possível tentativa de ocultar-se como
co-responsável pelas tropelias cometidas durante a migração.
No que lhe restou de existência,
o idealizador da colônia suíça de Nova Friburgo, a
despeito de algum prestígio regional, terá vivido em condições
algo obscuras, falecendo muito antes da esposa, a francesa Marie Therese
Chamberlland . Esta, moradora à Praia do Sacco , no Rio de
Janeiro, desapareceria em 18 de novembro de 1870, deixando
um inventário, que longe de expressar uma avultada fortuna remete
a um montante de pouco mais de 13 contos de réis a serem divididos
entre as filhas Marie Josephine Gachet e Marie Therese Guimarães,
esta última provavelmente esposa do testamenteiro Joaquim
José Rodrigues Guimarães.
Quanto a Gachet, a história não nos reservou registros
documentais sobre a data de sua morte e tampouco se lhe conhece o destino
dos ossos.
- Nicoulin, Martin – La Genèse de Nova Friburgo – Ed.
Universitaires - Fribourg
- Joseph Hech, colono de Willisau, deixou em alemão, um
interessante relato sobre a viagem ao Brasil, cujo original encontra hoje
nos Arquivos Cantonais de Lucerna.
- Nos sete navios destinados ao transporte de passageiros, nada
menos que 311 colonos pereceriam à bordo, sem contar pelo menos
dois recém-natos, desaparecidos sem registro durante o percurso.
Somam-se a estes os 43 indivíduos falecidos antes do embarque.
As mortes não cessariam, contudo, senão vários meses
após a instalação em Morro Queimado.
- O número total de colonos envolvidos na migração
varia conforme as fontes. Os arquivos existentes em Nova Friburgo e Arquivo
Nacional permitem-nos resgatar um expressivo número de clandestinos
ou passageiros de última hora não figurantes nas listagens
de inscrição, bem como desertores, assinalados como tendo
saído da Suíça sem jamais colocar os pés no
Brasil. Sem perder , contudo, a objetividade histórica , pode-se
estimar o movimento como tendo mobilizado seguramente pouco mais de 2000
indivíduos.
- Pró-memória – N. Friburgo . A tradução
do documento devemos a professôra Maria José Braga.
- Arquivo Nacional – Rio. Códices 318, 414,417.
- Gachet teve com ela 3 filhos, Marie-Marguerite-Josephine, Marie-Therese
e Adolphe-Joseph-Alcídio, nascido em 27-6-1812 em Nápoles.
Este não sobreviveria aos pais, conforme declaração
de Marie-Therese Chamberland em seu Inventário. |